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Washington Conceição

Tenho a honra de ser vizinho de bairro do Sr. João Ubaldo Ribeiro. Sim, falo do imortal e o bairro é o Leblon, no Rio. Cumprimentamo-nos quando nos vemos na Dias Ferreira, rua simpática em cujos bares e restaurantes se encontram as pessoas do bairro, cariocas em geral (nativos ou adotivos) e turistas.
As crônicas do Ubaldo são, para mim, a maior atração dos jornais de domingo. Elas me agradam muito. Sempre me interessam e mostram sua competência como escritor; em especial, sua forma de encaminhar os assuntos. Divirto-me com os personagens de Itaparica, através dos quais ele discute assuntos sérios com a ironia que lhe é habitual, bem como com os diálogos no boteco do Leblon que tratam de assuntos atuais de nossa sociedade. Impressiona-me sua ironia fina, que beira ao sarcasmo quando comenta os malfeitos dos políticos e governos em geral. Contudo, mantém clara sua posição de cidadão que se preocupa com o que ocorre no Brasil.
Outra razão forte de eu gostar de ler suas crônicas é que, coincidentemente, os fatos que ele crítica também me desagradam. Sua maneira de ver as coisas é muito semelhante à minha e – acredito – a de muitas pessoas deste País. Ou seja, sinto-me brilhantemente representado nessas críticas.
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Vou exemplificar.
Quando foi anunciada a reforma ortográfica, fiquei revoltado, indignado mesmo, com as alterações adotadas, algumas totalmente desnecessárias e outras prejudiciais, tanto a quem já escrevia corretamente quanto àqueles que estão aprendendo. Por exemplo, a abolição do trema, o qual informava ao leitor que a pronúncia das palavras é “lingüiça” e não “linguiça”, “freqüência” e não “frequência”, e assim por diante. As regras de hifenização das palavras, então, se tornaram uma grande complicação, de tal forma que o corretor ortográfico de meu processador de textos ainda não lida com elas muito bem.

Lembro-me que, num sábado, comentei com minha esposa: “Essa reforma ortográfica me parece muito estranha e extemporânea, de modo que só posso concluir que foi feita para beneficiar alguns diretamente interessados em reedições ou reimpressões de livros, especialmente livros escolares.” No dia seguinte, domingo, Ubaldo se ocupou do assunto e mostrou que chegou a conclusão semelhante, escrevendo da forma brilhante que lhe é peculiar.
Outra lei estranha que me surpreendeu foi aquela que alterou a normatização das tomadas elétricas para um formato exclusivamente brasileiro, fazendo com que, daqui para frente, toda a população tenha de alterar as tomadas em suas casas, pagando de próprio bolso (no caso desta lei, pareceu-me também que o objetivo último seria beneficiar alguns à custa de toda a população). Novamente, o Ubaldo se manifestou, com opinião parecida com a minha.

Mais um exemplo: há já algum tempo, ao assistir a futebol pela televisão, irrito-me com os narradores que, durante a transmissão, falam um milhão de coisas que poderiam deixar para os programas de comentários, principalmente estatísticas estapafúrdias, que servem apenas para tirar a atenção do jogo propriamente dito. Adotei a providência de tirar o som do aparelho. Senti-me amparado quando o Ubaldo escreveu “Cobertura Moderna”,crônica em que criticou exatamente essa nova forma de narrar as partidas. 
Em janeiro, Ubaldo costuma tirar férias e, habitualmente (parece-me) vai visitar Itaparica, sua terra. Descobri que 23 de janeiro é a data de seu aniversário e (parece-me, de novo) que ele sempre comemora por lá. Nesse mês, sinto falta de suas crônicas, mas, em compensação, sei que ele volta com novo estoque das ótimas histórias da ilha.
Sou também leitor de seus romances, que aprecio e não ouso analisar, mas minha convivência com ele é através de suas crônicas.

Minha mãe, falecida em 2007, aos 97 anos, também lia as crônicas do Ubaldo – e era sua fã. Em seus últimos anos, ela viveu em Franca, Estado de São Paulo. Quando a visitava, conversávamos muito, sobre vários assuntos, e ela comentava entusiasmada as crônicas mais recentes.
Esse entusiasmo de minha mãe me levou a abordá-lo uma manhã, no Leblon, na Rua Dias Ferreira. Não posso precisar o ano, talvez 1998. Eu estava trabalhando no centro do Rio e usava o ônibus “frescão”,cujo ponto final é naquela rua. Encontrei o Ubaldo, de bermudas e sandálias havaianas, provavelmente na hora em que ele ia buscar o jornal; eu o conhecia apenas por fotos e pela televisão, mas arrisquei e falei com ele.

O diálogo foi mais ou menos assim:
Cumprimentei:
— Bom dia, Ubaldo.
Ele me olhou, estranhando um pouco, pois não conhecia aquele indivíduo idoso, calvo e um tanto obeso, de óculos e bigode.
— Bom dia.
— Por favor, você poderia me dar um autógrafo? É para minha mãe, que lê sempre suas crônicas e as aprecia muito.

Ele me olhou, mostrando-se muito desconfiado, como se estivesse pensando: “Esse coroa está de gozação comigo. Pela idade que ele aparenta, é difícil acreditar que sua mãe ainda esteja viva!”.
Mas concordou e me deu o autógrafo; agradeci e despedimo-nos. Minha mãe ficou muito feliz com o presente e eu não esqueci sua gentileza.

Quando, finalmente, encerrei minhas atividades de consultoria e me aposentei de vez, decidi retomar seriamente um projeto antigo de escrever um livro que vinha se formando em minha cabeça já fazia muito tempo, um livro de histórias que aconteceram ao longo de minha vida e que eu tinha vontade de contar aos amigos. Viria a ser meu primeiro livro, escrito aos 76 anos.
Em maio de 2009, fiz o lançamento do“Histórias do Terceiro Tempo” no Rio de Janeiro, para o qual convidei os amigos daqui. Em setembro do mesmo ano, fiz um lançamento semelhante em São Paulo, para o qual convidei parentes e amigos de lá.O êxito da publicação do livro, considerando meus objetivos, me deu muita satisfação.
Em outubro de 2010, portanto mais de um ano após o lançamento do “Histórias do Terceiro Tempo”, ocorreu-me enviar ao Ubaldo um exemplar do livro. Como presente, pois eu sabia que dificilmente seus compromissos de trabalho e de outras leituras lhe dariam tempo para lê-lo. Encaminhado com uma carta, o livro serviria para me apresentar como leitor assíduo e grande apreciador de seus escritos, além de lhe contar que, realmente, o autógrafo que lhe pedi era para minha mãe e lhe agradecer mais uma vez por sua gentileza.

Eu já havia lido seu livro de crônicas,“O Conselheiro Come”, no qual, entre vários assuntos da vida de escritor, ele fala dos “invadenti”, pessoas insistentes que tentam invadir a privacidade do escritor, e daqueles que lhe mandam textos para análise e revisão, esperando um serviço gratuito. Tive, portanto, o cuidado de preparar e juntar ao livro uma carta explicando a intenção do presente. Nesta, depois de me apresentar e lembrar o nosso encontro na Dias Ferreira, anos antes, expliquei: “A forma que encontrei de lhe retribuir a atenção com minha mãe e o prazer que nos traz a leitura de suas crônicas e livros foi presenteá-lo com algo que, com esforço, consegui fazer: um livro, meu primeiro, que estou anexando, intitulado ‘Histórias do Terceiro Tempo’ ”. Mais adiante, declaro: “Agora, parece-me que uma declaração se faz necessária: não tive, com esta iniciativa, a mínima intenção de recorrer a você para possível divulgação do livro. Este foi feito em pequena tiragem, banquei sua publicação como editor independente e não tenho, com ele, objetivo financeiro algum – foi um livro escrito para meu prazer e dirigido aos amigos.”.

Ainda pensando nos “invadenti”, decidi não pesquisar seu endereço para lhe enviar o livro. Passei pelo bar e restaurante que ele frequenta e deixei com o gerente um envelope endereçado a João Ubaldo Ribeiro, contendo a carta e o livro.
Depois de uma semana, mais ou menos, passei pelo bar. No lugar do gerente estava uma moça; falei-lhe da correspondência que eu havia deixado para o Ubaldo. Ela procurou o envelope, não o encontrou, e confirmou que o Ubaldo havia estado lá no fim de semana. Concluiu que a entrega havia sido feita.

Passaram-se semanas, meses, e não tive confirmação por parte do Ubaldo, ou de alguém por ele, do recebimento da correspondência. Estranhei e cheguei a comentar o caso com meu amigo Gentil, mais experiente em lidar com livros e editoras. Ele disse que provavelmente meu presente tinha sido mal interpretado e contou que conhecia uma moça cujo trabalho é divulgar textos e que eu não poderia imaginar a intensidade e criatividade utilizadas nesse trabalho. Mencionei a declaração que fiz na carta sobre o fato do livro já estar publicado (em baixa tiragem) e lançado para conhecimento dos amigos, de modo que eu não estava pedindo qualquer ação por parte dele quanto à análise de texto ou divulgação. O Gentil considerou que, assim mesmo, eu poderia ter sido mal interpretado.

Depois de algum tempo, dei o assunto por encerrado.
Em fevereiro do ano passado, um ano atrás portanto, eu já estava lidando com meu blog, recém-implantado, quando recebi um e-mail que se constituiu numa surpresa excepcionalmente agradável. O assunto era “Livro extraviado” e o remetente era João Ubaldo Ribeiro! Ele me contava que, no dia anterior, no bar, a caixa o procurou com um livro e uma carta, que, fazendo uma arrumação, acabara de achar. E que era meu livro“Histórias do Terceiro Tempo”, “acompanhado de uma carta sua, muito simpática e bem escrita”. Agradeceu o presente, comentou gentilmente minha forma de escrever e disse que esperava que eu continuasse a honrá-lo em ser seu leitor.

O e-mail fez meu dia, divulguei-o para a família e respondi agradecendo suas palavras. Ainda trocamos e-mails sobre o que me contou um de meus filhos sobre a inclusão de Ubaldo em seu estudo sobre escritores latino-americanos na Universidade de Stanford, na Califórnia.
Desde então, o que aconteceu foi apresentar-me pessoalmente a ele e passarmos a nos cumprimentar na Dias Ferreira.

Contudo, todo este tempo, tive vontade de escrever no blog sobre minha apreciação das crônicas do Ubaldo e sobre a história do autógrafo e do livro extraviado. Decidi publicá-la hoje.
Na condição de escritor independente (como lembro sempre, independente aqui significa “aquele que paga para escrever”),eu tentava imaginar como um escritor profissional, famoso, detentor de prêmios, vê uma pessoa, um amador, que tem a pretensão de escrever. No caso do Ubaldo, fiquei com a impressão de que ele é paciente, condescendente, está seguro de que os amadores não afetam sua vida.

Acabei achando no futebol uma comparação razoável para meu caso. Pratiquei o esporte, como um amador aceitável pelos companheiros, na várzea, na universidade e nas peladas de veteranos; dependurei as chuteiras aos 50 anos. Desde muito jovem, assisti a partidas memoráveis de que participaram craques do maior calibre, inclusive o atleta do século XX, os quais certamente não se sentiam incomodados com os futebolistas amadores.
Daí minha conclusão: como escritor, sou um peladeiro feliz; como leitor, aprecio o trabalho dos craques.
E o Ubaldo, meu vizinho, é craque.



(Washington Luiz Bastos Conceição é autor independente, com vários livros que podem ser encontrados em nossa Livraria Virtual. A crônica acima foi extraída do blog Escritos do Washington e publicada em 10/2/2013).

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