"QUANDO
PROJETARAM A CIDADE DE Belo Horizonte, ainda no final do século XIX,
o córrego nascia na Serra do Curral, descia a encosta, chegava perto
do que hoje é a Igreja da Boa Viagem, atravessava em direção ao
Parque Municipal e desaguava no Ribeirão Arrudas.
Mas os engenheiros acharam que aquele
córrego chato atrapalhava o traçado tão bonito que fizeram na
prancheta, ruas e largas avenidas entrecortando-se geometricamente,
tudo dentro do melhor figurino da arquitetura de primeiro mundo. Não
havia lugar para um córrego preguiçoso, sinuoso, que abria grandes
valas onde tudo deveria ser simétrico e plano. Então fizeram a
primeira intervenção urbana com o objetivo de endireitar a
natureza. Mudaram o curso do córrego. Ao invés de ir para os lados
da Boa Viagem, pensaram, vamos retificar. Vamos fazê-lo descer pelo bairro do Sion
e sair na Rua Professor Morais, logo após a Avenida do Contorno. Daí continuar descendo pela Avenida Afonso Pena, e desviar na altura do Parque para
desaguar, finalmente, no Ribeirão Arrudas. Isto permitiu expandir-se o
bairro dos Funcionários, com muitas novas moradias, ruas e praças.
Depois, com o crescimento da cidade,
parece que começaram a reclamar daquele córrego correndo a
céu-aberto, trazendo tudo que despejavam pelo caminho, desde lá de
cima, da Favela do Acaba Mundo, e fizeram o que talvez nunca devessem
ter feito. Canalizaram o novo leito do córrego e fecharam por cima.
Agora, aqueles canais simpáticos, com muretas de cimento de proteção
deram lugar a pistas de rolamento, e os carros tomaram conta de tudo.
Então, a cidade tranquila, de córregos
preguiçosos, foi crescendo mais e mais, novas obras, novas avenidas,
e prédios. Até a década de 60 podia-se contar os prédios
residenciais, e mesmo os comerciais, em Belo Horizonte. Havia um em
construção na Praça 12, outro na Praça Raul Soares, outro na Rua
Tupis, e talvez outro na Rua Goitacases. Eram poucos. Todos moravam
em casas.
E assim começa a nossa história de
João e Maria. Ele trabalhador na mineradora, ela passadeira de roupa
em casas de família, como se dizia. Os dois nasceram em Saramenha,
perto de Ouro Preto, e vieram morar na Vila Acaba Mundo, quando João
conseguiu este emprego. A mineradora facilitou encontrar uma casinha
modesta, mas limpa. O trabalho de João ficava, por assim dizer, ali
ao lado, com nenhuma despesa de locomoção. Maria descia a ladeira,
passava pela Praça JK e caminhava até as ruas do Sion, onde ficavam
suas freguesas.
João e Maria têm um
único filho. A vizinhança o conhece como Cabeção. De fato parece
que ele tem um crânio maior do que a média dos garotos da idade
dele, ou o corpo mais franzino, ou os dois. Cabeção é um menino
esperto. Na escola não é o que se poderia chamar um aluno
brilhante, mas presta muita atenção no que a professora lhe diz, já
sabe ler e escrever, talvez até melhor do que a mãe. Cabeção
gosta mesmo é de brincar. Algum mal nisso?
Pois outro dia despencou uma chuvarada
na Vila Acaba Mundo e Cabeção quis sair para brincar na chuva como
todo mundo. Maria não estava em casa e pediu para uma vizinha tomar
conta do filho. A vizinha disse, depois do ocorrido, que não via
perigo algum em brincar na enxurrada com aqueles barquinhos de papel
de jornal. No máximo poderia resultar em resfriado.
Mas a enxurrada desceu forte e de
repente. Pegou Cabeção desprevenido com aquela água toda descendo
pelo leito do Acaba Mundo, e transbordando. Mas a água descia como
uma corredeira e Cabeção não teve onde se segurar. O rio, sim
porque de córrego havia passado a rio, o levou aos trambolhões. Ele
gritou por socorro, e teve gente que correu para salvá-lo. A vizinha
teve um ataque de choro, desesperada, não saía grito algum. Ficou
preso na garganta enquanto Cabeção era levado e desaparecia na
canalização do Acaba Mundo.
Deus do céu, Virgem Maria, nos acudam.
O povo todo da Vila acorreu e pediu ajuda aos Bombeiros, mas fazer o
quê? O menino sumira no turbilhão, certamente se afogara. Manda
alguém avisar o pai dele lá na mineração. Os bombeiros vão
tentar achar o corpo, talvez no Arrudas.
Mas o menino Cabeção, protegido pelo
seu anjo da guarda, passou por uma experiência que nunca mais alguém
poderá imaginar. Nem um cronista. Levado pelas águas barrentas, entrou pelas manilhas da Rua Grão Mogol e foi sair vivinho da silva
no canal da Professor Morais, onde agarrou-se como pode e começou a
gritar. Foi resgatado por dois soldados do Corpo de Bombeiros que
passavam naquele momento (como diz meu amigo Sarmento, coincidências
não existem), içado, e abrigado em casa ali perto, onde o cobriram
com cobertor, deram-lhe café quente coado na hora e pão com
manteiga. Os melhores de toda a sua vida, com certeza."
(Do livro "Maria Pia et cetera", Carlos G. Vieira, 1916)
11 de fevereiro de 2020
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