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Histórias, sem pé nem cabeça, de um menino que viveu em
uma cidade de sonhos nas décadas de 40 e 50, ao sopé da
Serra do Curral, ouvindo rádio, andando de bonde, e brincando na rua. Igual a todo mundo.


ARMAZÉM COLOMBO

A gente ia de bonde. Começava no abrigo Ceará, ali na praça Doze (era assim que se chamava naquela época a Praça Benjamin Guimarães ou Praça ABC), corria mole pela Paraúna (hoje Avenida Getúlio Vargas), subia Rio Grande do Norte e entrava na Cristóvão Colombo, em direção à praça da Liberdade. Fiz muitas vezes esse percurso, pés balançando, olhando as casas e as ruas, que se sucediam como em um filme. Este foi o meu primeiro passeio na vida, o primeiro encontro com o mundo. Está lá registrado no Livro do Bebê: “Foi passear com sua irmã Verinha até o Armazém Colombo”.

 O dito armazém era um ícone daquela época, nos arredores da Savassi, de caderneta e tudo. Consta que os donos eram portugueses da Beira Litoral, e ele ficava ali mesmo na esquina da Avenida Cristóvão Colombo com Rua Paraíba. As entregas a domicílio eram feitas com um furgão verde, daqueles tipo Dick Tracy. Os caixeiros, como se dizia, usavam na cabeça aquele saco de açúcar pérola azul, enrolado, como se fosse um boné. E aventais, naturalmente. Minha avó, senhorial, mandava entregar em casa. Nós, mais modestos, íamos de bonde fazer as compras. Isto foi antes de aparecer o Entreposto, ali na avenida do Contorno.

De qualquer forma éramos conhecidos. Todos eram conhecidos. A gente chegava, assuntava os preços, minha mãe sempre pediu um abatimento, o que era concedido. Deviam odiar aquele costume mineiro de pedir abatimento, ou já colocavam o desconto no preço. De qualquer forma, a lista ia sendo percorrida, e a caderneta devidamente preenchida, para pagamento ao final do mês. Eu sempre me preocupei mesmo foi com as bolachas “Maria”. Nunca consegui acompanhar aquela rotina cansativa, sem sair levando umas “Marias” no bolso. Ia comendo calmamente, e acho que pagava o sacrifício. E também gostava de ficar enfiando a mão no feijão, naquelas imensas caixas de madeira, com tampa, onde ficavam os grãos e as farinhas. O caixeiro usava a medida de latão, pesava, e separava os sacos para serem levados. Muito mais tarde voltei a ver aquele mesmo tipo de caixa na casa de D. Biju, em frente à Igreja de Nossa Senhora da Conceição em Sabará, remanescente do armazém de seu Antônio Geo.

Quando, alguns anos depois, me mandavam fazer alguma compra no Entreposto - uma central de abastecimento que ficava próximo da minha casa - ficava pensando que não havia nada como o Armazém Colombo. O Entreposto era pequeno e desorganizado. Devia ser porque era estatal. Já um prenúncio de que os governos seriam maus administradores. Salvava-se o açougue, na rua Estevão Pinto, em frente ao ponto do bonde, perto da casa de Vó Leonor. Minha mãe reclamava sempre do “contrapeso”, que os funcionários insistiam em adicionar ao seu pedido. Encarecia a conta e não servia para nada. Mas, mesmo assim, ela dizia que o Entreposto era melhor opção do que o Zé Açougueiro - isto para diferenciar do Zé Barbeiro, um ao lado do outro - porque este sim, tinha as balanças todas desarranjadas, assinalando um peso maior naturalmente.

Estes dois Zés sempre fizeram parte do folclore do bairro. Era no Zé Barbeiro que as notícias corriam rápidas, numa franca concorrência com o Bar do Plínio. Era lá que o Bebeca lia seu jornal da manhã todos os dias, de graça, já que morava em frente. Foi ali também que me fizeram aquele corte de cabelo humilhante, todo raspado, com um topetinho na frente. Era o padrão para crianças. O corte todo devia levar uns dez minutos. Lembro-me que o Zé Barbeiro não era de falar muito. Mas, ouvia. Assim como a Fernandinha aqui de casa. Ouvia muito, e murmurava concordâncias ou desaprovações, balançando a cabeça. Com isto, naturalmente, referendava os comentários que os fregueses faziam sobre tudo. Sobre a política (primeiro prato dos mineiros), sobre o Atlético, sobre mulheres infiéis, sobre o custo de vida. A prefeitura naquele início dos anos 50 era muito ativa. O prefeito era Américo René Gianetti, a quem fui apresentado uma vez no Parque da Gameleira pelo meu avô. Mas, mesmo assim, havia muita coisa a fazer. A Pampulha - esta grande obra de Juscelino - ainda era um ermo, com muito terreno baldio. O sistema de transporte urbano havia de ser mudado, com novas linhas de lotações, e a substituição progressiva do bonde pelo trólebus. Os cruzamentos de ruas e avenidas, sem sinais de trânsito, eram um desafio aos motoristas. O calçamento das ruas, em sua maioria, era ainda de paralelepípedos, exigindo um batalhão de meninos que se revezavam pelos bairros capinando o matinho que surgia entre as pedras.

Neste meio tempo, apareceram uns alemães na minha rua sobreviventes da Segunda Guerra Mundial. Eles foram morar na vila de casas do seu Leão. A família - pai, mãe e um casal de filhos - havia imigrado. A situação era tão feia que eles quase não tinham roupas. Os homens usavam ainda alguns casacos verdes do exército, para compor a indumentária nos dias mais frios. Os filhos foram logo empregados na Mannesmann, e o pai colocou uma banca de jornal em frente ao Entreposto (não me perguntem como essas coisas eram possíveis naquela época). Falar em banca de jornal é um pouco força de expressão. Acho que alguém usou este termo com o alemão e ele confundiu tudo. Arranjou um banco de madeira, encostou no muro da Casa de Saúde Santa Clara, botou as revistas e jornais em exposição e começou a vender. Apenas tijolos, toscamente arranjados por cima, impediam os exemplares de saírem voando com o vento. Isto tudo sem falar uma palavra de português. Não era este o país da oportunidade? Não devia ser aqui a tal da América?

(do livro Armazém Colombo, Carlos G. Vieira, edição revista de 2012)

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