Histórias, sem pé nem cabeça, de um menino que viveu em
uma cidade de sonhos nas décadas de 40 e 50, ao sopé da
Serra do Curral, ouvindo rádio, andando de bonde, e brincando na rua. Igual a todo mundo.
(do livro Armazém Colombo, Carlos G. Vieira, edição revista de 2012)
uma cidade de sonhos nas décadas de 40 e 50, ao sopé da
Serra do Curral, ouvindo rádio, andando de bonde, e brincando na rua. Igual a todo mundo.
ARMAZÉM COLOMBO
A
gente ia de bonde. Começava no abrigo Ceará, ali na praça Doze (era assim que se chamava naquela época a Praça Benjamin Guimarães ou Praça ABC),
corria mole pela Paraúna (hoje Avenida Getúlio Vargas), subia Rio Grande do Norte e entrava na
Cristóvão Colombo, em direção à praça da Liberdade. Fiz muitas
vezes esse percurso, pés balançando, olhando as casas e as ruas, que
se sucediam como em um filme. Este
foi o meu primeiro passeio na vida, o primeiro encontro com o mundo.
Está lá registrado no Livro do Bebê: “Foi passear com sua irmã
Verinha até o Armazém Colombo”.
O dito armazém era um ícone daquela época, nos arredores da Savassi, de caderneta e tudo. Consta
que os donos eram portugueses da Beira Litoral, e ele ficava ali mesmo na esquina da Avenida Cristóvão Colombo com Rua Paraíba. As entregas a domicílio eram
feitas com um furgão verde, daqueles tipo Dick Tracy. Os
caixeiros, como se dizia, usavam na cabeça aquele saco de açúcar
pérola azul, enrolado, como se fosse um boné. E aventais,
naturalmente. Minha avó, senhorial, mandava entregar em casa. Nós,
mais modestos, íamos de bonde fazer as compras. Isto foi antes de
aparecer o Entreposto, ali na avenida do Contorno.
De
qualquer forma éramos conhecidos. Todos eram conhecidos. A gente
chegava, assuntava os preços, minha mãe sempre pediu um abatimento,
o que era concedido. Deviam odiar aquele costume mineiro de pedir
abatimento, ou já colocavam o desconto no preço. De qualquer
forma, a lista ia sendo percorrida, e a caderneta devidamente
preenchida, para pagamento ao final do mês. Eu sempre me preocupei
mesmo foi com as bolachas “Maria”. Nunca consegui acompanhar
aquela rotina cansativa, sem sair levando umas “Marias” no bolso.
Ia comendo calmamente, e acho que pagava o sacrifício. E também
gostava de ficar enfiando a mão no feijão, naquelas imensas caixas
de madeira, com tampa, onde ficavam os grãos e as farinhas. O
caixeiro usava a medida de latão, pesava, e separava os sacos para
serem levados. Muito mais tarde voltei a ver aquele mesmo tipo de
caixa na casa de D. Biju, em frente à Igreja de Nossa Senhora da Conceição em
Sabará, remanescente do armazém de seu Antônio Geo.
Quando,
alguns anos depois, me mandavam fazer alguma compra no Entreposto -
uma central de abastecimento que ficava próximo da minha casa -
ficava pensando que não havia nada como o Armazém Colombo. O
Entreposto era pequeno e desorganizado. Devia ser porque era estatal.
Já um prenúncio de que os governos seriam maus administradores.
Salvava-se o açougue, na rua Estevão Pinto, em frente ao ponto do
bonde, perto da casa de Vó Leonor. Minha mãe reclamava sempre do
“contrapeso”, que os funcionários insistiam em adicionar ao seu
pedido. Encarecia a conta e não servia para nada. Mas, mesmo assim,
ela dizia que o Entreposto era melhor opção do que o Zé Açougueiro
- isto para diferenciar do Zé Barbeiro, um ao lado do outro - porque
este sim, tinha as balanças todas desarranjadas, assinalando um peso
maior naturalmente.
Estes
dois Zés sempre fizeram parte do folclore do bairro. Era no Zé
Barbeiro que as notícias corriam rápidas, numa franca concorrência
com o Bar do Plínio. Era lá que o Bebeca lia seu jornal da manhã
todos os dias, de graça, já que morava em frente. Foi ali também
que me fizeram aquele corte de cabelo humilhante, todo raspado, com
um topetinho na frente. Era o padrão para crianças. O corte todo
devia levar uns dez minutos. Lembro-me que o Zé Barbeiro não era de
falar muito. Mas, ouvia. Assim como a Fernandinha aqui de casa.
Ouvia muito, e murmurava concordâncias ou desaprovações,
balançando a cabeça. Com isto, naturalmente, referendava os
comentários que os fregueses faziam sobre tudo. Sobre a política
(primeiro prato dos mineiros), sobre o Atlético, sobre mulheres
infiéis, sobre o custo de vida. A prefeitura naquele início dos
anos 50 era muito ativa. O prefeito era Américo René Gianetti, a
quem fui apresentado uma vez no Parque da Gameleira pelo meu avô.
Mas, mesmo assim, havia muita coisa a fazer. A Pampulha - esta grande
obra de Juscelino - ainda era um ermo, com muito terreno baldio. O
sistema de transporte urbano havia de ser mudado, com novas linhas de
lotações, e a substituição progressiva do bonde pelo trólebus.
Os cruzamentos de ruas e avenidas, sem sinais de trânsito, eram um
desafio aos motoristas. O calçamento das ruas, em sua maioria, era
ainda de paralelepípedos, exigindo um batalhão de meninos que se
revezavam pelos bairros capinando o matinho que surgia entre as
pedras.
Neste
meio tempo, apareceram uns alemães na minha rua sobreviventes da
Segunda Guerra Mundial. Eles foram morar na vila de casas do seu
Leão. A família - pai, mãe e um casal de filhos - havia imigrado.
A situação era tão feia que eles quase não tinham roupas. Os
homens usavam ainda alguns casacos verdes do exército, para compor a
indumentária nos dias mais frios. Os filhos foram logo empregados na
Mannesmann, e o pai colocou uma banca de jornal em frente ao
Entreposto (não me perguntem como essas coisas eram possíveis
naquela época). Falar em banca de jornal é um pouco força de
expressão. Acho que alguém usou este termo com o alemão e ele
confundiu tudo. Arranjou um banco de madeira, encostou no muro da Casa de Saúde Santa Clara, botou as revistas e jornais em exposição e
começou a vender. Apenas tijolos, toscamente arranjados por cima,
impediam os exemplares de saírem voando com o vento. Isto tudo sem
falar uma palavra de português. Não era este o país da
oportunidade? Não devia ser aqui a tal da América?
(do livro Armazém Colombo, Carlos G. Vieira, edição revista de 2012)
Marcadores: Pequenas histórias
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