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Este é o terceiro episódio, para usar um termo atual do streaming, de um folhetim escrito em quatro partes, tendo como cenário o antigo bairro do Rio Comprido, no Rio de Janeiro. Para ler as partes anteriores, publicadas aqui neste blog, clique em  Rio Comprido, 1939 e Rio Comprido, 1940


EU ESTOU EVITANDO ENCONTRAR AQUELAS meninas da Costa Ferraz. A situação da guerra na Europa piorou muito. A Alemanha, segundo dizem, está arrasando Londres com bombardeios, e agora se voltou para a Rússia, com a qual tinha um tratado de não-agressão. Hoje comentou-se lá em casa o cerco de Stalingrado. A Mãe Rússia, disse meu pai, vai se render daqui a pouco. Neste caso só restaria à Inglaterra pedir trégua e fazer um acordo, como sempre quis o Führer.

Alguns amigos de meus pais decidiram voltar para a Alemanha e ajudar no esforço de guerra. Minha mãe até pensou nisso, mas meu pai é mais cuidadoso e disse que devemos esperar a paz na Europa primeiro, que segundo ele deve ser coisa para este ano. Os americanos continuam numa pseudo-neutralidade. O que vou dizer se aquelas meninas me encostarem na parede? O governo brasileiro, diz o jornal O Globo, está sendo pressionado para não vender matéria-prima para a Alemanha, principalmente depois que o cargueiro Taubaté foi afundado no Mediterrâneo. Em compensação, na casa do Alexandrino estão todos virtualmente apavorados. A Itália não tem se saído muito bem nesta guerra. Dizem que Mussolini só queria entrar em guerra no ano que vem, quando imagina que a Itália estaria preparada. Mas Hitler pressionou e Mussolini ordenou a invasão da Grécia. Pronto, era o que faltava. Os gregos rechaçaram o ataque e agora os alemães estão ajudando os italianos a conquistar a Grécia. Mais atraso na invasão da Rússia. Muitos italianos mortos e feitos prisioneiros. Alexandrino torce para a Itália e eu torço para a Alemanha. E aqui nós todos, inclusive na casa da Costa Ferraz, torcemos para o América, e tudo bem.

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Anna não se encontra comigo há quatro dias. Estou preocupado. Fomos a uma matinê no novo cinema Olinda da Praça Saens Peña no último domingo e sei lá o que eu disse que ela não gostou. Já tentei encontrá-la no Largo do Rio Comprido, fui até a Igreja de São Francisco, eu um luterano, para ver se dava de cara com ela, e nada. Estou meio sem jeito de ter que perguntar para dona Manuela. Doente ela não está, porque uma amiga me contou que a viu na Rua do Bispo. Meu Deus, será que voltou aquela mania de colecionar lâmpadas de jardim? Fico no meu quarto, rolando na cama pensando nela. Quando vou para a escola não consigo prestar atenção no que os professores dizem, e fico rabiscando na última folha do caderno. Podem escrever aí. Estou apaixonado pela Anna. Acho que deve ser isto o que as meninas chamam de paixão. Se não for, então não sei o que é. Minha mãe, outro dia, me perguntou se ainda continuam aquelas aulas de alemão, porque me vê sumir de vez em quando e Anna não aparece mais lá em casa faz tempo. Temos muitos segredos que ninguém pode saber.

Encontro Anna, assim do nada, na Rua da Estrela. Parecia que flutuava. Vinha cantando, quase não me viu. Tive que chamá-la. E ela sussurrou no meu ouvido: “Vamos a uma tarde dançante?”

Anna, eu não sei dançar. Você me ensina?”

Alemão que não sabe dançar é novidade, Hans. Mas, tudo bem, eu te ensino.”

Nenhuma palavra, nenhuma explicação sobre quatro dias de sumiço, o que para mim foi a coisa mais próxima da eternidade que já senti na minha vida. Combinamos ir sábado ao Clube Alemão. Eu ainda tentei ensaiar alguns passos em casa, minha mãe achou muita graça. Me disse como era valsa, polca, e outros ritmos do seu tempo. Tentou me ensinar alguns passos, dois para lá, dois para cá, um negócio assim, e eu tropeçava. Achei que não dava para o ramo, mas paciência. Tentei pensar como eu jogava futebol, entrar no ritmo como eu entrava numa dividida, e achei um pouco fora de propósito. Arrumei-me como se fosse a uma festa e subi a Santa Alexandrina, com brilhantina no cabelo.

Anna já me esperava na porta. Como é menina rica foi de carro com o pai, que a deixou lá em cima. Estava linda. Deslumbrante. Parecia que ia receber um prêmio, e este prêmio era eu, pensei comigo mesmo, sem muita convicção, devo esclarecer. Pegou-me pelas mãos, sorrindo, e minhas pernas bambearam. Fomos entrando no salão, música já tocava, outros rapazes mais velhos olharam para ela com olhos de cobiça, e eu não gostei nem um pouco. Estava com aquele perfume francês que me deixava inebriado. Disse que eu a deveria conduzir, falou que aquela música era fácil, eu iria aprender num instantinho. Mas conduzir para onde?

No salão alguns casais bem mais velhos que a gente deslizavam como se estivessem um palmo acima do chão. Uma elegância que dava gosto de se ver. E eu duro. Minhas pernas pareciam não me obedecer. Anna continuava sorrindo, eu com um dos braços em volta da cintura dela, o outro segurando uma das mãos tão macias e tão quentes. E ela dizia: “Se solta, Hans. Deixa a música te levar.”

Mas levar para onde? Eu bem que queria saber.”

Aos poucos eu fui pegando o jeito da coisa, e já conseguia distinguir um ritmo do outro. Como era um clube alemão, também havia valsa e polca, e minha mãe havia me prevenido. Quando tocava uma música americana, notava-se um certo ar de contrariedade nos casais. Mas não em Anna, que aí se empolgava mais e mais, e me arrastava com ela.

Foi então que a coisa complicou. Alguém mandou parar a música, e um alemão pegou o microfone para fazer um comunicado. As tropas do general Rommel haviam chegado a Tobruk, na Líbia. Houve uma discreta salva de palmas, e depois colocaram para tocar Lili Marleen, na voz de Marlene Dietrich. Anna fechou a cara. Apenas sussurrou: “Vamos embora.”

Que absurdo, Hans,” disse-me ela, já descendo a rua.

Qual deles?” Perguntei fingindo inocência.

Hans, nós somos brasileiros, estamos no Rio de Janeiro, um país neutro e muito longe da guerra. Que negócio é esse de comemorar vitórias alemãs? E se eu e minha família estamos torcendo pelos ingleses, para que tudo acabe bem e logo? Este Hitler é um louco.”

Fiquei chocado. Nunca tínhamos conversado assim sobre o que se passa na Alemanha. Nem para aprender alemão, para ser sincero, Anna demonstrou algum interesse. Não sabia que ela tinha uma posição formada. Talvez não tivesse dito nada para não ficarmos em lados opostos. Eu mesmo acompanhava tudo de longe, torcendo lá no íntimo pela terra dos meus pais e meus avós, evitando comentários sobre a invasão da França, Vichy, Norte da África, Albânia e outras coisas destas. Eu já nem queria que me chamassem na vizinhança de Alemão. Eu queria ser apenas Hans. Eu também nasci no Brasil, apesar da pregação que ouvia lá em casa dos amigos de meu pai de que nós todos devíamos lealdade ao Reich Alemão. E tem mais, quem deu ideia de irmos ao Clube Alemão foi ela mesma.

Anna estava realmente brava. Fizemos um longo trecho da descida da Rua Santa Alexandrina em silêncio. Eu, que não tinha nada com isso, estava sem saber como desfazer aquele clima. Então perguntei: “Você não está brava apenas porque eu pisei no seu pé?” Anna sorriu. “Não, bobinho. Nem percebi que você pisou no meu pé. Mas para quem dizia que não sabia dançar, até que você se saiu muito bem.” Daí para frente ela mudou o semblante e voltou a ser a Anna de sempre. Deu ideia de irmos comer paçoca na barraquinha que ficava parada na esquina da Rua Japeri. "Eu pago", disse ela.

Esta é a terceira parte de um folhetim, que pode ser lido no livro Maria Pia et cetera, de Carlos G. Vieira. Não leu a primeira parte? Clique aqui. Quer saber o final da história? Faça um download na Amazon.com.br ou adquira o livro impresso na loja Uiclap.

(4 de fevereiro de 2024)

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